Este blog abordará temas atuais da pesquisa clínica, com foco nos avanços em terapias com células CAR-T, no desenvolvimento clínico de terapias avançadas e nos desafios enfrentados por pesquisadores para obter a aprovação de estudos com essas tecnologias no Brasil.
Para compreender melhor o cenário nacional, durante o Clinical Research Meeting — evento online realizado pela Inovatie em agosto de 2024 — o Prof. Dr. Diego Villa Clé, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, compartilhou sua experiência na condução de um estudo clínico de iniciativa do investigador utilizando células CAR-T* no tratamento de doenças de linfócitos B. O caso de Ribeirão Preto serve como exemplo da complexa jornada que um pesquisador brasileiro precisa enfrentar para alcançar a aprovação de um estudo clínico envolvendo terapias avançadas.
Em 2015, o Dr. Villa Clé e sua equipe de pesquisa do Hemocentro de Ribeirão Preto deram início ao desenvolvimento de um CAR-T* com tecnologia nacional, destinado ao tratamento de duas doenças distintas: o linfoma difuso de grandes células B refratário ou recidivado (RR), um subtipo dos linfomas não Hodgkin, e a leucemia linfoblástica aguda RR. Apesar de apresentarem diferenças, ambas as doenças têm origem nos linfócitos B e compartilham a expressão do antígeno CD19.
Como a terapia convencional é pouco resolutiva para essas enfermidades - a sobrevida é baixa, de cerca de apenas 6 meses, e somente 20% dos pacientes respondem aos tratamentos padrão-, identificaram, nessas indicações, uma necessidade médica não atendida que almejaram suprir com o projeto de pesquisa.
Embora atualmente existam três produtos de terapia avançada disponíveis comercialmente para essas indicações, com resultados impressionantes demonstrados em estudos pivotais, os custos associados ao tratamento são igualmente impressionantes. Isso limita ou até inviabiliza o acesso da população brasileira a essas terapias. Segundo estimativa apresentada pelo Dr. Clé, se esses tratamentos fossem oferecidos a todos os pacientes brasileiros com indicação, considerando que mais de 70% da população depende do Sistema Único de Saúde (SUS), o impacto financeiro representaria cerca de 4 a 5% do orçamento total do Ministério da Saúde.
Em vista disso, com o objetivo de ampliar o acesso dos brasileiros aos produtos de terapia avançada, o Dr. Villa Clé e equipe construíram um projeto de pesquisa para produzir o próprio Car-T. Desenharam-no seguindo todas as normas e procedimentos da pesquisa clínica no país, passando pelas etapas de validação, controles de qualidade, testes in vitro, testes em vivo, até chegar na fase do estudo clínico, ou seja, desenvolveram o construto, produziram a modificação genética, fizeram a ativação dos linfócitos e realizaram os estudos de prova de conceito para mostrar que a CAR-T era efetiva tanto em modelos em vitro quanto em vivo. Nessa fase, muitos pacientes procuraram o serviço voluntariando-se para receber o tratamento inovador, visto que já não tinham outras opções terapêuticas. Assim, embora não seguindo exatamente o que é preconizado para essa etapa do estudo, alguns pacientes foram tratados de forma compassiva com as células CAR-T produzidas durante essa fase da pesquisa.
Os resultados desse tratamento em caráter compassivo foram recentemente publicados pelo grupo de pesquisa (Donadel C. et al., BMT 2024). A casuística incluiu 20 pacientes, sendo 13 casos de leucemias linfoblásticas agudas (LLAs) e 7 de linfomas, todos refratários a 2 a 9 linhas de tratamento anteriores. Muitos desses pacientes também não responderam ao transplante. Para serem elegíveis ao uso compassivo, os pacientes não poderiam ter outras opções terapêuticas disponíveis e precisavam concordar em participar do estudo.
Dos 13 pacientes LLA, a maioria ainda permanece livre da doença, sendo que alguns já completaram 2 anos de seguimento pós-tratamento. Para os casos de linfoma não Hodgkin, os resultados foram um pouco piores, pois houveram mais recaídas, embora as taxas de resposta tenham sido muito semelhantes às dos produtos comerciais, ficando entre 50% e 80% de resposta global, tanto no linfoma quanto na LLA. Além disso, alguns resultados foram bastante emblemáticos, como o de uma paciente com linfoma folicular que tinha falhado a 4 tratamentos prévios e que alcançou a resposta completa 30 dias após receber a infusão das células CAR-T.
O perfil de segurança observado foi bastante semelhante ao descrito na literatura. A síndrome de liberação de citocinas (Cytokine Release Syndrome - CRS) é uma toxicidade característica dessa terapia, podendo ser grave em alguns casos. No estudo realizado em Ribeirão Preto, um terço dos pacientes apresentou CRS grave, exigindo hospitalização em ambiente com UTI disponível e uma equipe treinada para lidar com essas complicações. As toxicidades neurológicas, embora menos frequentes, também apresentaram potencial de gravidade, o que levou à integração e treinamento da equipe de neurologia para identificar e manejar esses eventos adversos.
Após a conclusão de todas as etapas descritas anteriormente, foi necessário ampliar a produção laboratorial para um nível industrial. Para isso, foi estabelecida uma parceria com o Instituto Butantan, que possui expertise em produção farmacêutica em larga escala. Seguindo rigorosos padrões e regulamentações específicas, foi construída a fábrica NUTERA, dedicada à produção de terapias avançadas. A instalação conta com seis salas limpas para a produção de CAR-T e ocupa uma área total de mais de 2.800 m², com capacidade produtiva de até 300 CAR-T por ano.
Em 2023, com o sucesso alcançado na primeira fase, foi iniciada a submissão do estudo clínico denominado Carthedrall, que já está em andamento. Trata-se de um estudo de fase 1/2, focado principalmente na avaliação da segurança, além de analisar a efetividade do tratamento em um contexto controlado. Serão recrutados 81 pacientes, não apenas do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, mas também de outros centros no estado de São Paulo. Na etapa seguinte, a intenção é expandir o estudo para centros de pesquisa em outras regiões do Brasil. Clique aqui e saiba mais sobre o estudo clínico.
Segundo o Dr. Clé, para tornar tudo isso possível, a parceria com os órgãos regulatórios, especialmente com a Anvisa, foi essencial, embora, como esperado, houvesse desafios ao longo do processo. O principal obstáculo foi garantir o financiamento, uma dificuldade comum em estudos de iniciativa do investigador. Após várias tentativas sem sucesso, conseguiram recentemente o patrocínio do Ministério da Saúde, que fornecerá recursos significativos para a condução do estudo. Aqui, mais uma vez, o projeto inova ao servir-se de um modelo de financiamento pouco frequente, já que não é comum ver o Ministério da Saúde investindo em pesquisa clínica. Outra grande dificuldade enfrentada pelo grupo foi a gestão do estudo como um todo. As equipes de pesquisa clínica no Brasil estão mais acostumadas a trabalhar com estudos patrocinados e enfrentam desafios ao lidar com estudos de iniciativa do investigador, devido à pouca familiaridade com essa abordagem. Por isso, é fundamental promover esse tipo de estudo para o avanço da pesquisa clínica no país.
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*CAR-T:
“A tecnologia celular CAR-T é um tipo de imunoterapia que utiliza linfócitos T... O tratamento consiste em retirar e isolar os linfócitos T, “reprogramá-los” para conseguirem identificar células do câncer e depois inseri-los de volta no organismo do indivíduo. ...
CAR-T é como são chamadas as células que são usadas na terapia. O nome CAR-T vem da união de dois conceitos: CAR é a sigla em inglês para receptor quimérico de antígeno (Chimeric Antigen Receptor) e T vem de linfócitos T ... Na terapia celular, o linfócito T é alterado para exibir em sua superfície os receptores CAR ...
Produção: Após a coleta do sangue, os pesquisadores isolam os linfócitos T e aplicam em laboratório um reagente que estimula a ativação dessas células. Uma vez que os linfócitos T são ativados e multiplicados, eles são colocados em contato com um vetor lentiviral – um vírus modificado incapaz de causar doença. Esse vetor contém a informação genética de um receptor que reconhece o antígeno chamado CD-19, que é expresso na superfície das células tumorais. Por conter a informação genética do receptor do CD-19, o vetor faz a célula T expressá-lo em sua superfície, originando as células CAR-T que serão usadas na terapia – e que se ligarão ao CD-19 presente nas células tumorais.
O produto é congelado e passa por rigorosos testes de controle de qualidade, para só depois ser infundido no paciente em um processo semelhante à transfusão de sangue. De volta à corrente sanguínea, esse conjunto de células CAR-T reconhece e se liga às células do câncer, induzindo a morte celular.” Terapia Celular - Instituto Butantan
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