Inteligência Regulatória (IR) é uma prática que tem sido empregada em setores altamente regulados, como o da energia, de planos de saúde e da indústria farmacêutica.
Trata-se de um processo sistematizado de captação de informações e análise que visa respaldar, em fundamentos sanitários, a elaboração de estratégias e tomadas de decisão para que a empresa obtenha vantagens competitivas ou evite prejuízos.
Em outras palavras, dentro do que é permitido, busca-se a maneira mais rápida para registrar um produto, para comprovar sua segurança e eficácia, visto que a legislação sanitária é bastante complexa, com várias camadas, e para entender esse emaranhado, o que pode e o que não pode, é necessário conhecer profundamente o arcabouço sanitário.
Mas como a Inteligência regulatória vai ajudar na pesquisa clínica?
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que existem dois tipos de pesquisa clínica: (i) a pesquisa clínica para fins científicos, que responde à pergunta do pesquisador e (ii) a pesquisa clínica voltada para fins de registro do produto, que tem normas muito específicas e que responde à pergunta “o tratamento ou produto para saúde é seguro, eficaz e pode ser comercializado no país”.
É dentro do universo da pesquisa para fins de registro que a IR se aplica, pois, para esse tipo de pesquisa, além da aprovação ética, é também necessária a aprovação prévia da Anvisa.
Por esse motivo, é crucial que o projeto de pesquisa seja desenhado já dentro do escopo normativo da Anvisa. Desviar-se da legislação não é uma opção. Além disso, a inteligência regulatória só faz sentido quando aliada à inteligência clínica.
Logo, as áreas médica, de pesquisa e desenvolvimento e regulatória têm que trabalhar em cooperação, trocando muita experiência, porque o conhecimento de cada área é complementar ao da outra. Quando se fala de IR em pesquisa clínica, é imprescindível que haja essa integração.
Trabalhando-se deste modo, o processo de IR vai direcionar os levantamentos que devem ser feitos pela área médica, tais como pesquisar as informações sobre a doença, sua fisiopatologia, sintomas, entender o mecanismo de ação da droga, os efeitos farmacológicos, a farmacocinética, levantar quais são os medicamentos já disponíveis na mesma indicação, os desenhos dos estudos clínicos dos competidores e também identificar as informações presentes e as que faltam para complementar os dados de segurança e eficácia.
Por outro lado, a área regulatória deverá especificar qual o enquadramento do produto. Isso é fundamental e é uma das primeiras coisas a ser definida dentro do processo de IR, porque cada tipo de registro de medicamento ou de produto para saúde tem um enquadramento diferente, uma maneira diferente, específica, de comprovar a segurança e eficácia. Portanto, sabendo-se o enquadramento correto e os dados clínicos levantados, elabora-se o racional de desenvolvimento clínico de maneira assertiva focando a obtenção do registro do produto.
Por exemplo, para um biológico novo, será necessário fazer os estudos completos, todos os não clínicos, fase 1, fase 2, fase 3, farmacodinâmica, farmacocinética e demais estudos complementares para comprovar a segurança e eficácia. Já para um biossimilar, pode-se, por exemplo, reduzir significativamente os estudos não clínicos e fazer um estudo de não inferioridade complementado com obtenção dos dados de imunogenicidade.
Para um medicamento sintético é importante identificar a via de desenvolvimento que será utilizada. Uma molécula nova, por exemplo, certamente será pela via completa, já, para um medicamento inovador, será pela via abreviada.
O processo de IR avalia também se há na legislação algum caminho que permita reduzir o número de estudos para o registro do produto a fim de acelerar seu lançamento. Por exemplo, será que é mesmo necessário um estudo clínico fase um, fase dois, fase três, se a droga já é conhecida? Será que uma nova forma farmacêutica irá de fato necessitar de um estudo clínico, ou um estudo de biodisponibilidade relativa ou de farmacodinâmica já seriam o suficiente?
Outra questão bastante relevante é pensar no medicamento comparador focando na estratégia de comprovação de segurança e eficácia, mas levando em consideração a questão do preço, visto que a definição do preço será baseada no preço do comparador.
Todas essas conexões serão realizadas nesta etapa de enquadramento, escolha da via de desenvolvimento, escolha do comparador e dados levantados para elaborar o racional de desenvolvimento clínico mais adequado ao produto e registrá-lo com a maior rapidez e menor custo possível.
A maneira de apresentar o racional para a Anvisa deve também ser discutida pelo time, visto que a apresentação dos dados para a Agência deve ser feita de uma maneira que a convença que a estratégia adotada no dossiê de desenvolvimento clínico é a melhor para comprovar a segurança e eficácia daquele produto.
Além disso, avalia-se a possibilidade de obter a priorização de análise para o processo, visto que reduzir o tempo de análise pela Anvisa pode ser muito significativo, dada a extensa fila de produtos submetidos para aprovação do DDCM e do registro. Então, por exemplo, se a indicação for para uma doença rara, ou pediátrica, ou sem tratamento, ou ainda se o medicamento tiver o potencial de ser muito melhor ou de dar uma sobrevida muito maior, cabe a priorização de análise.
Após a coleta de todos esses dados, a próxima etapa é organizar e analisar tudo que já se tem para pontuar aquilo que ainda falta, quais dados precisam ser gerados para comprovar a segurança e eficácia. O importante, nesta fase, é entender o que já se sabe do medicamento e o que precisa ser completado, e, em seguida, traçar a estratégia que será adotada, bem como apontar alternativas para o registro, buscando sempre registrar o produto no menor tempo, no menor custo e com o atendimento dos requisitos sanitários.
Em suma, dessa fase de análise deve-se extrair mais do que informações, na verdade, ela deve oferecer elementos que sirvam para embasar a tomada de decisão pelo time e pela empresa.
Note que o processo de IR prevê traçar a estratégia principal e alternativas a ela, pois durante a reunião de validação do projeto de desenvolvimento com a Anvisa, é possível que, embora a estratégia principal esteja bem embasada e demonstre que contém todos os dados necessários, a Agência pode entender diferente e, estando-se com as alternativas em mãos, na mesma reunião pode-se conseguir a aceitação da Agência para seguir com o projeto.
Vale ressaltar que a reunião de validação com a Anvisa, antes da submissão, não é obrigatória, mas traz vantagens substanciais. Como a Agência não é uma consultoria de desenvolvimento, se questionada sobre o que deve ser feito para mostrar a segurança e eficácia de um produto, ela vai solicitar todos os testes. Porém, na reunião de validação, há a oportunidade de se apresentar uma estratégia estruturada e discutir, argumentar com a Agência a validade do projeto proposto, captando suas orientações.
Visto que durante o processo de IR tudo foi construído em conjunto, a estratégia de registro já contempla o racional de desenvolvimento clínico. Portanto, logo após a validação da estratégia junto a Anvisa, é possível dar seguimento à finalização do dossiê de desenvolvimento clínico e, assim, submetê-lo à aprovação ética. Após a aprovação ética, a pesquisa poderá então ser submetida para aprovação da Agência. Por fim, apenas após a aprovação da Agência é que o estudo clínico poderá ser iniciado.
É importante notar que a pesquisa clínica não é um fim, ela é um meio para se registrar o produto.
Outra etapa do processo que merece destaque é a de acompanhamento da execução da estratégia aprovada, porque, por ser um projeto de longo prazo, várias situações podem mudar durante o decorrer do estudo, como modificações na legislação, entrada de novos competidores ou outras alterações de mercado, e essas mudanças podem requerer ajustes no protocolo ou diferentes tomadas de decisões.
Em conclusão, quando se fala em registrar um produto na Anvisa, diz-se de ciência aplicada, que tem que seguir as regras para conseguir registrar o produto. Um desenho de desenvolvimento, um protocolo clínico para fins de registro deve responder a todas as questões de segurança e eficácia e construído de forma com que a Anvisa entenda que aquele produto está apto para chegar no mercado.
A pesquisa clínica para fins de registro apresenta desafios que vão além de encontrar a cura de doenças e salvar vidas. Pois tem que ser desenvolvida de maneira estratégica e focada, respeitando a legislação, considerando o que está acontecendo no entorno e sendo planejada de maneira assertiva, para que a “cura” encontrada possa ser registrada, aprovada e disponibilizada para o mercado.
Comentarios