Dados de mundo real são dados coletados rotineiramente na prática clínica sobre a saúde de um paciente, oriundos de fontes variadas de informação. Esses dados de mundo real provêm de registros eletrônicos de saúde, de informações sobre produtos, doenças, tecnologias de saúde digital, operadoras de planos de saúde, de dispositivos e mídias sociais, estudos observacionais, além de exames laboratoriais ou de imagem, prescrição e vendas de medicamentos, entre outras fontes. Tradicionalmente, e até recentemente, tais dados eram aplicados apenas na vigilância pós-comercialização e em estudos de história natural, prevalência, incidência e progressão de doenças. Contudo, nos últimos anos, com o aumento da disponibilidade de dados gerados com auxílio da tecnologia, os dados de mundo real começaram a ser vistos como uma alternativa viável para completar lacunas no conhecimento ou na impossibilidade da realização de ensaios clínicos randomizados (1–3).
Os ensaios clínicos randomizados permanecem sendo o padrão-ouro na avaliação da segurança e eficácia de medicamentos e dispositivos médicos, porém, os dados de mundo real podem facilitar o desenho e a complementação dos resultados destes estudos. Neste contexto, a análise de dados de mundo real pode contribuir para a redução de custos na fase clínica, sendo de mais fácil acesso e preenchendo lacunas do cuidado e tratamento das doenças. Além disso, pode facilitar a obtenção das informações que, de outra forma, seriam mais difíceis de obter ou estariam restritas a grupos específicos de pacientes. Dados importantes como eventos adversos raros, por exemplo, podem ser avaliados em estudos com dados de mundo real. Mas, sem dúvida, novas metodologias precisam ser desenvolvidas para garantir a confiança nas evidências geradas por meio destes dados (1,2,4).
É importante reconhecer que ainda há uma série de desafios no uso de evidências de mundo real na determinação de potenciais benefícios ou riscos de um medicamento ou dispositivo médico, entre eles dados faltantes, falta de randomização e falta de padronização na coleta dos dados. Tais fatores podem levar à vieses na análise, comprometendo a confiabilidade e, consequentemente, a adequabilidade da utilização desses dados na determinação da eficácia e segurança de um produto ou na tomada de decisões médicas, regulatórias e administrativas relacionadas aos pacientes. Diante dessas limitações, é necessário buscar a padronização dos processos e o estabelecimento de critérios que garantam a qualidade e a confiabilidade dos resultados produzidos pelos estudos que utilizam dados de mundo real (1–3,5,6).
Nos últimos anos, agências regulatórias internacionais publicaram diretrizes para a utilização de dados de mundo real para o registro de medicamentos. Em parceria com agências internacionais, a ANVISA empenhou-se na padronização das terminologias e orientações a respeito do desenho e da realização dos estudos com dados de mundo real que resultou na publicação da versão 1 do Guia de boas práticas para estudos de dados de mundo real. O guia é um documento que norteia o desenho de protocolos para demonstração da segurança e da eficácia de um medicamento através de estudos com dados de mundo real. Tal documento tem o objetivo de direcionar a construção de protocolos, mas cabe ao patrocinador adequar os seus estudos à literatura científica de forma a atender aos requisitos para avaliação da segurança e eficácia baseado em evidências e à regulamentação vigente (7).
Neste novo guia, a ANVISA apresenta a legislação atual, listando todas as resoluções e guias para o registro de medicamentos que devem ser observados e seguidos pelos patrocinadores e investigadores. Além disso, traz definições de dados e evidências de mundo real, e classifica os dados nos seguintes tipos: se qualitativos e/ou quantitativos; se estruturados, semiestruturados ou não estruturados.
Essa classificação é importante na avaliação da viabilidade dos estudos, na execução e na análise dos resultados.
Estudos de mundo real devem ser utilizados para avaliar a inclusão ou alteração, de dose ou de indicação de um medicamento, bem como avaliar a ampliação do seu uso para populações desassistidas ou para populações em que a realização dos estudos clássicos é difícil. Além disso, estudos de mundo real podem ainda ser realizados no contexto de doenças raras, em situações em que não é possível realizar ensaios clínicos tradicionais por questões éticas e como apoio aos resultados de segurança e eficácia dos ensaios clínicos randomizados.
Existem características que podem comprometer a coleta, organização e análise dos dados de mundo real, como a heterogeneidade, a falta e a desestruturação dos dados bem como a diversidade de suas fontes. Assim, os desafios encontrados no desenvolvimento dos estudos de mundo real podem impactar a credibilidade de seus resultados. Para gerar evidências confiáveis, os estudos observacionais precisam ser cuidadosamente desenhados e controlados, com suas limitações claramente descritas no protocolo.
A escolha do desenho do estudo de mundo real é crucial para a eliminação ou minimização de vieses provenientes da coleta e análise dos dados. A ANVISA aponta, como passos importantes, a clareza da pergunta de pesquisa e a escolha das variáveis, seguida pela confiabilidade do banco de dados, planejamento das técnicas de coleta e análise, cálculo do efeito do tamanho da amostra, avaliação da qualidade das fontes de dados, descrição do número amostral, clareza dos critérios de seleção e rastreabilidade dos dados. Os tipos de desenho de estudos, apresentados no guia para geração de evidências de mundo real, são estudos observacionais (prospectivos e retrospectivos), ensaios de braço único com controle externo, estudos pragmáticos e ensaios clínicos sequenciais. Apesar de enfatizar a priorização dos estudos prospectivos, o guia oferece a possibilidade de utilização de estudos retrospectivos, desde que sejam capazes de gerar evidências de qualidade.
Diante da inviabilidade da realização de um ensaio clínico randomizado, os estudos de mundo real podem ser uma alternativa exequível e interessante. Vale a pena conferir no novo guia os fatores que precisam ser considerados no desenho e execução desses estudos, visando assegurar um alto padrão de qualidade científica, sempre de acordo com os princípios éticos e a legislação vigente.
Referências:
1. Liu F, Demosthenes P. Real-world data: a brief review of the methods, applications, challenges and opportunities. Vol. 22, BMC Medical Research Methodology. BioMed Central Ltd; 2022.
2. Dang A. Real-World Evidence: A Primer. Vol. 37, Pharmaceutical Medicine. Adis; 2023. p. 25–36.
3. Chodankar D. Introduction to real-world evidence studies. Vol. 12, Perspectives in Clinical Research. Wolters Kluwer Medknow Publications; 2021. p. 171–4.
4. Monti S, Grosso V, Todoerti M, Caporali R. Randomized controlled trials and real-world data: differences and similarities to untangle literature data. Vol. 57, Rheumatology (Oxford, England). NLM (Medline); 2018. p. vii54–8.
5. Bakker E, Plueschke K, Jonker CJ, Kurz X, Starokozhko V, Mol PGM. Contribution of Real-World Evidence in European Medicines Agency’s Regulatory Decision Making. Clin Pharmacol Ther. 2023 Jan 1;113(1):135–51.
6. Blacketer C, Defalco FJ, Ryan PB, Rijnbeek PR. Increasing trust in real-world evidence through evaluation of observational data quality. Journal of the American Medical Informatics Association. 2021 Oct 1;28(10):2251–7.
7. ANVISA. Guia de boas práticas para estudos de dados do mundo real. Guia no 64/2023. 2023. Guian64_2023_versao1.pdf (www.gov.br)
Comments